Se
existe modalidade em que Portugal se pode considerar o país mais
rico no que concerne a títulos de alto gabarito internacional, essa
modalidade é sem margem para dúvida o hóquei em patins. Títulos
mundiais, europeus, torneios de enorme prestígio além fronteiras
fazem com que a nação lusitana ocupe um lugar de destaque no hóquei
patinado planetário. O hóquei em patins foi aquilo o que podemos
chamar de uma paixão à primeira vista para o povo português, uma
paixão travada há precisamente 100 anos atrás, no outono de 1912.
No dia 15 de outubro desse longínquo ano o inglês Arthur
Vleeschower, professor de patinagem, tentou pela primeira vez
implantar em solo luso uma modalidade cuja origem remonta à
Antiguidade Clássica, na Grécia, mas que em termos de modalidade
desportiva como hoje a conhecemos surgiu nos finais do século XIX,
em Inglaterra.
Voltando
ao célebre dia 15 de outubro de 1912 digamos que os acontecimentos
então verificados foram pautados por um certo desnorte, isto é, os
intervenientes nesse ensaio não tinham grandes conhecimentos
técnico-táticos, além de que os equipamentos eram para lá de
rudimentares! Apesar de tudo a nova modalidade conseguiu desde logo
despertar uma certa curiosidade e encanto entre os portugueses.
A
chama da paixão começava a deflagrar. Nos anos seguintes foram pois
várias as tentativas de dinamizar o hóquei, e em 1915 ocorreu em
Lisboa aquele que pode ser considerado o primeiro jogo mais a sério
de uma modalidade que haveria de trazer a Portugal décadas mais
tarde tantas e tantas alegrias. Disputaram esse encontro duas equipas
do (clube) Desportos de Benfica, que na época era o proprietário de
um dos melhores rinques de patinagem do país, situado na Avenida
Gomes Pereira, na freguesia lisboeta de Benfica. Equipados a rigor
(vestiam camisola e calça) os jogadores de ambos os conjuntos
interpretaram o jogo segundo as regras importadas do hóquei no gelo,
adaptadas por Rogério Futscher, um dos grandes impulsionadores - e
praticante - do hóquei patinado a nível internacional. Conta-se que
na altura ainda não existiam as tabelas, sendo que os limites da
pista eram substituídos por linhas brancas.
Em
1917 acontece em Portugal o primeiro confronto entre dois clubes
diferentes. Frente a frente estiveram o Desportos de Benfica e o
Recreio e Desportos da Amadora, que mediram forças no rinque do
primeiro clube. Nos anos que se seguiram a modalidade cresceu em lume
brando, digamos assim, disputando-se alguns campeonatos não oficiais
sob a tutela do Sport Lisboa e Benfica, que entretanto havia criado
uma equipa de hóquei em patins.
Até
que em 1921 a modalidade conhece um enorme avanço em Portugal. É
fundada a Liga Portuguesa de Hockey, e com regras do hóquei em
patins internacional organizam-se os primeiros campeonatos oficiais,
cabendo ao Benfica o estatuto de primeiro grande colosso da
modalidade em terras lusas, já que entre 1925 e 1935 o clube
encarnado dominou todas as provas disputadas.
Nos
dez anos seguintes outros clubes começaram a impor-se e aos poucos
foram acabando com o reinado dos benfiquistas, casos do Sporting,
Futebol Benfica, e do Paço de Arcos.
Em
termos de seleção nacional o primeiro grande momento aconteceu em
1930, ano em que o combinado português participou naquela que era
até então a única competição de cariz internacional ao nível de
seleções, o Campeonato da Europa. A Inglaterra era na altura a
grande potência do hóquei europeu, tendo vencido com relativa
facilidade os quatro primeiros Europeus (1926, 1927, 1928, e 1929),
partindo para esta 5ª edição do certame como a principal favorita,
senão mesmo a única favorita, à conquista do cetro, algo que
com... naturalidade viria a acontecer, e se viria a repetir durante
os sete Campeonatos da Europa que se seguiram!
Depois
destas 12 vitórias noutros tantos campeonatos realizados o hóquei
patinado britânico deixou de reinar no Velho Continente (e no resto
do Mundo), dando então lugar ao braço de ferro protagonizado por
Espanha e Portugal, que ainda hoje se mantém com uma ou outra
intromissão da Itália pelo meio. Mas é em 1930 que Portugal
aparece pela primeira na alta roda do hóquei internacional, mais
precisamente em Herne Bay. localidade costeira inglesa que acolheu o
certame continental. Os poucos recursos financeiros que o hóquei
lusitano tinha naquela época fizeram com que esta viagem até
Inglaterra tivesse sido uma aventura rocambolesca, cheia de episódios
caricatos conforme relatou posteriormente Fernando Adrião, o então
guarda-redes de uma seleção nacional que era constituída na sua
totalidade por jogadores do Benfica, recorde-se a melhor equipa
lusitana de então. «A ida a Inglaterra só foi possível porque
houve um empréstimo de quatro contos de réis. O meu equipamento,
por exemplo, não era reduzido - era antiquado: patins de adaptar ao
pé, luvas de futebol, caneleiras de críquete. Uma vez um patim
saiu-me do pé, atingindo a altura de um primeiro andar. Deixou os
adversários em pânico! A comida era toda doce. Até bacalhau com
doce comemos!».
Seis
anos volvidos a Alemanha dominada por Adolf Hitler acolheu a 9ª
edição do Campeonato da Europa e simultaneamente a 1ª do
Campeonato do Mundo. Passamos a explicar. Os Europeus de 36, 39, 47,
48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, e 56 eram também considerados
Campeonatos do Mundo, ou seja o vencedor do Europeu era também
rotulado Campeão do Mundo, e vice versa, sistema que só findou em
1957, quando as duas competições foram separadas. Pois bem o 9º
Europeu que coincidiu com o primeiro Mundial teve em Portugal uma das
equipas sensação. Em Estugarda, debaixo de um ambiente para lá de
hostil - a ditadura nazi ditava leis - os portugueses conquistaram a
medalha de bronze, sendo superados apenas pela crónica campeã
Inglaterra e pela vice-campeã Itália.
Este
terceiro posto foi recebido com uma onda gigante de entusiasmo em
terras lusas, e quando os jogadores chegaram ao Rossio (Lisboa) foram
recebidos como verdadeiros heróis nacionais.
1947:
o início do reinado lusitano
O
hóquei em patins tinha conquistado definitivamente o coração dos
portugueses, não demorando muito a ser considerada a segunda
modalidade de eleição do país logo atrás do futebol.
A
popularidade do hóquei crescia de ano para ano, e apercebendo-se
disso o regime fascista que imperava em Portugal logo tratou de se
agarrar à modalidade e dela fazer uma das suas bandeiras de
propaganda política junto do povo. E a primeira - ou uma das
primeiras - medidas que o Estado de Salazar decidiu levar a cabo foi
trazer a Portugal o grande evento do hóquei em patins internacional
da altura, o Campeonato do Mundo, que era também ao mesmo tempo o
Campeonato da Europa. António Salazar tratou a "pão de ló"
uma seleção nacional que estava habituada a viajar em «terceira
classe, viagens envoltas em miscelânea de odores a galinha assada,
peixe frito ou sardinhas de conserva, que causavam náuseas,
passando, depois, pelo cheiro de corpos mal lavados», conforme
recordaria um dos grandes hoquistas da altura, António Adão.
E
em 1947 este cenário mudou por completo. Os jogadores passaram a
usufruir de inúmeras mordomias patrocinadas pelo Regime Fascista de
Salazar que até então não conheciam, e foi pois como verdadeiros
lordes que levariam um país inteiro ao delírio na sequência da
conquista dos títulos mundial e europeu. Lisboa, e o Pavilhão dos
Desportos, acolheu uma competição dominada amplamente por uma
talentosa seleção portuguesa, composta por lendas como Emídio
Pinto, Cipriano Santos, Olivério Serpa, Sidónio Serpa, António
Soares, Correia dos Santos, Álvaro Simões, e Jesus Correia, este
último o atleta dos "dois amores", já que para além de
um exímio jogador de hóquei era um fabuloso futebolista, tendo
feito parte dos célebres "5 Violinos" do Sporting.
Imortalizados
desde logo pelo povo lusitano os conquistadores do(s) primeiro(s)
grande(s) título(s) do hóquei patins português receberam anéis de
ouro, adornados com brilhantes e safiras, cigarreiras de prata,
apólices de 50 contos contra acidentes pessoais, e até estojos de
pó de arroz! Todo o país chorou de alegria com esta conquista, até
o próprio António Salazar, que ao que parece não conteve as
lágrimas assim que teve conhecimento que Portugal era campeão do
Mundo. Um título repetido mais de uma dúzia de ocasiões nas
décadas seguintes, assim como os de campeões da Europa, onde a
seleção portuguesa é por esta altura a mais titulada, com duas
dezenas de ceptros nas suas vitrinas.
Legenda
das fotografias:
1-Seleção
de Portugal que conquistou o Mundial (e Europeu) de 1947
2-A
cerimónia de inauguração do Campeonato do Mundo (e da Europa) de
1947, no Pavilhão dos Desportos de Lisboa, local onde decorreu o
certame que coroou pela primeira vez os lusos como reis do planeta do
hóquei
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